terça-feira, 25 de setembro de 2018

proximidade, amizade, valor, um homem à parte

Eu sei distinguir, aprendi tardiamente é certo, é mais do que sabido .O mundo parecia perfeito , e é...as pessoas é que não! e é uma chatice.
Eu adoro ler os seus textos, são simples mas tem a sua complexidade, tem um argumento de um filme clássico - é perfeito.
Descobri-o muito tarde, com pena minha, mas ainda vou a tempo, se há pessoas que eu quem gostaria de estar uma tarde era com ele - eu tenho a certeza que seria tão interessante.
Ele fala com toda a gente do bairro, fala com os sãos , com os pedagogos, com os turvos de espírito, e sobretudo com aqueles que estiveram na guerra do ultramar tal como ele, um médico. Tem uma amizade por eles que é de uma ternura fraternal! fantástico!
A sua forma de escrever fascinou-me não pela escrita, pelo "conto" ou pelo "português" magnifico da sua caneta, mas o toque e a leveza da condição humana e a verdade sobre as coisas.
Eu sei que a "verdade" é um conceito filosófico abstrato - o que é verdade para mim pode ser não verdadeiro para o outro, sobre o mesmo assunto, acontecimento, ou juízo de valor.
Um breve excerto da despedida ao seu irmão João. Algo fantástico.

"Eis o primeiro outono sem o João. Quando, antes de morrer, veio aqui despedir-se de mim, numa longa conversa feita sobretudo de silêncios, que chegaram a demorar meia hora antes que um de nós falasse, a certa altura reparou num livro de Marcel Pagnol numa estante, e disse devagarinho, enquanto olhava para ele
– A nossa infância.
Tínhamos doze, treze anos, já nos interessávamos muito por literatura e descobrimos Pagnol na tabacaria da piscina da Praia das Maçãs, que vendia livros, onde, por essa altura, também descobrimos Sartre, Camus, tantos outros, o meu querido Blondin, por exemplo. Pagnol eram as suas peças de teatro, que nós, dois pré adolescentes, adorávamos. Foi o nosso primeiro encontro com Marselha, com Marius, César, todas as criaturas que enchiam as suas páginas, tão feitas para as crianças que éramos, com a sua ironia, a sua graça, a sua leveza sem pretensões. Deixámo-lo pouco depois, com a descoberta de Sartre, Camus, etc.
(o que a gente gostou da Nausée)
tudo aquilo que devorávamos num apetite fascinado, entre amores adolescentes de uma inocência absoluta, desejos vagos, o imenso mistério da vida que provocava em nós um maravilhamento em simultâneo angustiado e feliz, a sensação de descobrirmos, espantados, a imensidão do mundo e o infinito mistério da existência.
– A nossa infância
disse o João
– A nossa infância
e voltámos a ter doze anos de súbito, no inquieto encantamento de dantes, quando tentávamos encontrar e entender os outros e nós mesmos, cheios de certezas, dúvidas, perguntas, uma ingenuidade inquieta que ainda hoje me enternece, uma avidez que ainda hoje me espanta, numa época em que tudo nos exaltava e assustava, entre paixões inocentes e desejos confusos. À noite, na cama, ouvíamos o mar. Muitos anos depois voltámos a dormir no mesmo quarto. Levantei-me primeiro do que ele e, a caminho da casa de banho, fiz-lhe, pela única vez na vida, uma festa na cabeça. Sei que ele não estava a dormir porque as pálpebras lhe tremeram, e aquela festa na sua cabeça foi um dos actos mais afectuosos de toda a minha vida, nós que não nos tocávamos nunca e tudo era muito mais vivido interiormente do que feito por fora. A nossa relação, aliás, foi sempre assim. Como o meu irmão dizia
– Tu sabes sempre o que eu estou a pensar e eu sei sempre o que tu estás a pensar
como em Nova Iorque, por exemplo, para onde fui para estar com ele numa altura difícil da sua vida, em que eu ficava a escrever enquanto o meu irmão trabalhava no hospital
(era o Fado Alexandrino, lembro-me tão bem)
depois jantávamos os dois, depois víamos os play-offs do basquete na televisão, torcendo pelos Los Angeles Lakers e pelo grande Julius Erving, dos Philadelphia 76ers, sem falar do enorme Moses Malone, e aos sábados à noite íamos a uma discoteca em New Jersey, dançar ao som de uma orquestra com um vocalista que imitava Sinatra e onde não deixámos mal o nome do País. Não me lembro de haver voltado a ter tanto bâton na camisa. De modo que voltei de Nova Iorque cheio de prosa e nódoas. Depois o meu irmão voltou também, fez os concursos para catedrático aqui, onde não se portaram bem com ele
(para um membro do júri, que veio de Coimbra, julgo, declarou-lhe antes de começar a responder
– A si não lhe entregava nem o meu cão
para um outro
– A sua pergunta é desonesta mas mesmo assim vou responder
e a quem ele pagou na mesma moeda e, depois do concurso, revolucionou a Neuro-Cirurgia no nosso País com o seu saber, a sua extraordinária coragem, a sua capacidade de trabalho. A sua existência nunca foi fácil e a sua qualidade era lendária. Nunca discutimos
(nunca discuti com os meus irmãos)
não me lembro de um amuo sequer
(nunca amuámos entre irmãos)
a única censura entre nós a frase
– Isso era desnecessário.
Depois adoeci, e estive internado no seu hospital, ele passava todas as manhãs pelo meu quarto, dizia
– Fica-me em caminho
(e não ficava, claro)
e ia-se embora, depois fui internado de novo
(mesma reação dele)
depois foi a sua vez de adoecer e viveu a doença com uma dignidade absoluta. E depois a tarde em que nos despedimos, e em que estivemos, todo o tempo, tão próximos como sempre. A mãe contou-me uma vez que ele lhe perguntou
– O António não gosta mais do Pedro do que de mim, pois não?
Se me tivesse perguntado a mim, ter-lhe-ia respondido que gostava mais dos dois. E finalmente, depois da missa na Basílica da Estrela saí de lá de mão dada com o nosso irmão Nuno, que me dizia
– Meu bebé, meu bebé
o que me ajudou tanto. Antes tinha-se ido embora o Pedro. Ambos continuam a doer-me muito. Na Basílica da Estrela comoveu-me imenso Paulo Portas, que eu não conhecia pessoalmente. Ter-me vindo apertar a mão com os olhos cheios de lágrimas. De modo que, se por acaso ele ler isto, digo-lhe que fiquei instantaneamente seu amigo pela sua generosidade e pela sua elegância. Um homem generoso e elegante é tão raro, meu Deus, um homem com capacidade de amar assim ainda mais. Um homem que sabe o peso do amor por um irmão raríssimo. Um homem que passou pelo mesmo que eu uma preciosidade. Mais que uma preciosidade: é um Homem como eu entendo que um homem deve ser. Que Deus lhe pague. E então a gente começa de novo a acreditar nas pessoas.


3 comentários:

  1. Falhou-me alguma coisa ou não disseste o nome? Seja como for, não importa. Julgo até saber de quem se trata. Se sim, gente como nós mas com um cunho muito, muito especial e que admiro muito. Desejo-te todo o bem da terra e do céu! Beijo.

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  2. Lobo Antunes.
    Obrigado pelas tuas palavras, agradeço e retribuo em dobro.
    Um bjo tb para ti.

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  3. Sim, um deles, qual? Não importa. Uma família especial, sem dúvida. Que a tua semana de trabalho te traga muitas realizações e que te sinras feliz, tu próprio.

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