sábado, 29 de abril de 2017

caído ao chão

Na Quarta feira um puto maltrapilho atravessou-se à minha frente, com as mãozitas abertas e sujas, pedia-me qualquer coisa. Eu pouco percebo a lingua turca, apenas apontei para a boca : queres comer?!
Comoveu-me o sorriso aberto que ele enderessou, frágil, mas sincero. Fomos a uma Firincilik , acho que é assim que se escreve o nome de uma padaria.
As padarias não são como as portuguesas ou francesas, onde o "pão" tornou-se num comércio de fazer dinheiro e não para matar a fome. Aqui, as padarias ainda são à moda antiga, tal e qual como aquelas que eu conheci quando era menino, como este.
Entra-se pela fábrica e sente-se o calor da lenha de pinho a arder nos fornos de tijolo de burro . O cheiro, esse é divinal, estava aqui uma hora inteira. Tinha já saudades deste cheiro...tão bom.
O puto de mão dada, pede não sei o quê, e o padeiro olhou para mim, ao qual disse que sim piscando o meu olho esquerdo.
O puto saiu a correr , para onde, não sei, mas uma voz em inglês disse para mim: hoje calhou a si, ele escolhe sempre pessoas diferentes. Concerteza o puto faz aquele ritual todos os dias.
Paguei 0,45 Liras pelo produto, não mais do que 12 cêntimos de Euro e saí.
O meu modo de vida está cheio de rituais, um dos quais, tomar café sempre antes de começar a trabalhar. Aqui, poucas hipóteses tenho senão o tradicional copo de um quarto de café da cadeia Starbucks . O café é uma porcaria, mas cheira a café, e isso chega-me.
Ao passar uma rua vislumbro o puto com aquela espécie de pão distribuindo-o a dois velhos, sentados no chão, pareceu-me ao longe, gente abandonada. Sim, pelo aspecto deveriam ser, no meu julgamento...
Vou-me surpreendendo nesta vida por pequenos grandes gestos, aqui e ali, numa cidade de milhões de habitantes, onde o trânsito é caótico, onde as pessoas se atropelam umas às outras nas passadeiras e nas ruas, no frenesim louco desta vida, sim desta vida. Ainda tenho tempo para assistir a coisas destas. Um pão caído ao chão, partilhado por aquele que tem mais fome, notável esta criança.

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Le Monde

Depois de uma viagem atribulada, pelo esquecimento do meu passaporte, porque eu tenho aquela mania que todos os países da velhinha Europa Oriental já pertencem "aquilo" que se chama de UE, mas não.
O meu hotel é sempre o mesmo, o Seven Hills, geralmente está sempre cheio, parece um encontro de culturas, gente de todo lado. Aqui, cheira a oriente, e a Europa é já ali, é só atravessar o Bósforo. Francamente turística, Istambul é recheada de histórias, contos de fadas, de amores fatais, de evasões bárbaras, é um melting pot de gentio. Estou no sitio certo...tudo pode acontecer, até um atentado.
Fui surpreendido pelas juras de amor eterno de um jovem casal, em lua de mel, numa dessas noites, aqui no hotel onde estou por breves dias.
Eu estava sentado num dos sofás individuais que o bar dispõe e na minha frente, sentados também,o casal deliciava-se com shots de Raki, um cocktail alcoólico muito típico neste país.
O casal nunca se "prendeu" em palavras ou gestos por minha causa, e penso, pelo facto de estar a ler o Le Monde, diário francês que eu aprecio, estarem tão bem relaxados na sua pronúncia inglesa pura como se comunicavam.
Enquanto ele passava a sua mão pelos cabelos da sua amada, ela devolvia o seu gesto beijando o seu pescoço de uma maneira laivosa. Os espelhos do bar davam o toque final aquela cena.
Fiquei com uma inveja do menino que tem uma bola nova de futebol e o outro não.
Fiquei feliz de ouvir estas palavras da boca da mulher ao seu noivo : Abraça-me até ao Sol da Manhã!
Bebi o resto do meu café, dobrei o jornal e fui deitar-me.
Há momentos que valem a pena. Adoro ver gente feliz, e fico feliz por isso, afinal, ainda há uma réstia de esperança neste mundo.

domingo, 23 de abril de 2017

a consulta nº 3

É a minha ultima semana, e a minha ultima visita a esta casa. Vou agradecer aqueles que de alguma maneira contribuíram para que eu vivesse mais tempo - tudo é relativo, amanhã até pode ser o dia!
Fui até a sala X onde eu passei quase as minhas férias, troquei cumprimentos, apertei mãos e sobretudo custou-me aquele abraço ao Prof. Victor. Foi sempre uma pessoa muito fria, segundo a esposa, uma advogada, agora residente em Aveiro. Estavam separados há dois anos, mas conviviam em franca amizade. Depois, chamou-me, e disse: o Victor nunca abraçou assim ninguém, despediu-se de si. Concerteza que falaram de muita coisa. Foi bom por momentos tê-lo aqui.
E eu respondi que falámos muito, de muita coisa, eu que não sou um palrador de primeira, mas, mesmo assim falámos de tudo, acho eu. Foi bom dizer algumas verdades.
Lamento o vosso divórcio, eu também sou, mas a minha relação com a minha ex-esposa não é das melhores. Está na hora de partir. E parti dali...olhei para tràs quando estava no parque de estancionamento e olhei lá para cima. Não sei se tive sorte ou eles azar...já não sei nada.
Fisicamente estou uma merda, gordo como uma bola, os medicamentos dão cabo de mim, mas tem de ser durante mais 3 meses, depois, ginásio!!!
Tenho mais 3 dias de férias e vou aproveitar ao máximo esse tempo.
Chorei no caminho, nem sei porquê, não tenho um motivo sequer...já fiz este caminho tantas vezes, e hoje tive esta estranha sensação. Eu devia falar mais, olhar mais, sentir mais, dizer as verdades como o Victor me disse. Não tenhas medo disse-me, vão acontecer duas coisas, ou as pessoas vão gostar ou não, uma coisa é certa, tornas-te mais honesto contigo mesmo. Faz isso, tranquiliza-te.
Devo eu aceitar estas palavras de um homem mais velho que está preso à vida pelos arames?!
Vou levar comigo as suas sábias palavras. O Sr. Victor, Professor de Filosofia.
Agora é hora de ver o meu mar, a minha praia...e respirar. Sim, respirar.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

a consulta nº 2

O que mais me impressionou, não foi o estado das pessoas que em breve nos vão deixar, mas sim, a expressão, o olhar, e o modo de estar dos familiares, filhos e amigos.
Antes eu não sabia interpretar um olhar, não me interessava, o verbo era o suficiente.
Hoje, eu sei interpretar os silêncios, os olhares vazios, os cheios, os distantes. O olhar diz tudo.
Não vi aqui nenhum cristalino , que brilhasse, que radiasse vida.
Custou-me (horrores) olhar um filho de dez anos agarrado à mão do pai. A sua ausência em casa deve ser notada pelo pequeno. A esposa evita o máximo a sua presença e vai para o corredor.
Outra, a mulher do futebolista trás os amigos, e a amena cavaqueira ilude o silêncio e algumas conversas menos próprias.
Chegar uma pessoa e cumprimentar um morto vivo com um: Então?! tás bom?! é de uma falta de coerência absoluta. As pessoas que estão bem não sabem o que é estar mal. Eles já nem estão aí para certas coisas, certas conversas, certos comportamentos. Apenas esperam pelo seu momento.
Eu saí pelo próprio pé, até ao pseudo jardim, vejo o que eu quero, o que não quero, e imagino aquela menina sem cabelo de novo com tranças louras até ao fundo das costas.
Na semana seguinte perguntei pela Alice, a menina das tranças louras , o assistente abanou a cabeça e seguiu cabisbaixo. Não precisei de mais nada...
Nisto perco-me, deambulo pelos caminhos , sem saber para onde vou, e porque vou, penso naquilo que eu fiz até hoje, aquilo que me aconteceu até hoje. Eu tenho razão em não fazer planos, hoje sim, é o meu plano, e tenho que fazer. Amanhã, sei lá...é outro dia.
Deixei a sala dos "injetados" , despedi-me de cada um deles decentemente, saí pelo próprio pé, esperavam-me no automóvel e segui para casa. Amanhã é outro dia.
Afinal, é bom estar vivo, para contar, fazer, sentir, e dizer verdades...todas, antes que não haja mais tempo nenhum.
Não falei da minha consulta, nem precisei, passar receitas de medicamentos e mais medicamentos.
Aos 45 anos sou um drogado em pleno...Raio de vida esta.

terça-feira, 18 de abril de 2017

a consulta nº 1

Eu guardo tudo para o fim. Tenho pavor a hospitais, não gosto de tomar medicamentos. Mas a dor intensa obrigou-me a ir a um especialista. Um conhecido da família, daqueles que se tratam por TU.
Estando no estrangeiro, esta foi provavelmente a melhor alternativa. Não há filas, não há listas de espera, os testes são feitos na hora...e a conta no final também é grande.
Lembro-me dos primeiros sintomas, pensava que era normal, mas a minha performence foi das melhores que eu tive. Foi mesmo. Por isso pensei mesmo que seria normal.
Os anos foram passando, e de vez em quando tinha dores horríveis, lembro-me de um dia em plena formação profissional, onde era monitor, tive de finalizar a acção e mandar os meus formandos para casa. Rebolei pela sala dentro, parecia que tinha o demónio no corpo.
Chegou o dia da primeira consulta, e lá fui eu ao sitio do costume, já conheço infelizmente os cantos à casa.
Dias antes tinha feito análises a tudo, uma bateria de testes como eu nunca tinha sido sujeito.
Quando cheguei ao gabinete médico, os meus exames já tinham sido analisados.
Eu estava sentado e olhámos um para o outro de frente, ele perguntou a minha idade, eu disse, 45.
Perguntou-me se eu era casado, eu disse que não. Perguntou-me se tinha companheira , eu disse que não. Depois fez uma pergunta relacionada, para mim foi estranha, mas hoje percebo a razão da qual. Não interessa muito para esta parte.
- Tens aqui uma coisita...
Eu não gosto de meias palavras, principalmente neste tipo de consulta. E fui directo à questão. É grave? sim ou não?
Ao que ele respondeu que era grave, tratável, mas, eu teria que fazer um esforço para vencer aquilo que eu não sabia o que era.
O médico explicou-me como seriam as minhas próximas horas, os meus próximos dias. Eu não achei muita piada aquilo...e estivemos mais de duas horas dentro do gabinete.
Fiz um tratamento rápido de duas semanas no IPO, e só tinha mais uma semana de férias. Seriam decisivas para a minha viagem de regresso ou não. O meu trabalho estava em risco, mas na altura pouco pensava em trabalho.
Ia e vinha duas vezes por dia fazer tratamento, fiz acupuntura, e fiz uma dieta diabólica, perdi algum peso, normal,nestas situações. O meu corpo mesmo assim parecia uma bola, os corticóides, e a HPB fizeram de mim o mais belo e mais perfeito boneco da Michelin.
(...)

segunda-feira, 17 de abril de 2017

a vida que te vê partir

É provavelmente uma das maiores epidemias do mundo atual, e,  muito provavelmente terá concerteza uma dimensão muito maior neste novo século. O Cancro.
A besta como alguns especialistas a tratam, não escolhe género, raça, rico ou pobre...vem de mansinho sem dor, a sua principal característica, depois instala-se onde quer, e depois faz-nos apodrecer por dentro até ao ultimo suspiro. A vida torna-se numa contagem decrescente, num cronómetro de qual atleta olímpico...um segundo é um segundo, e um minuto de vida vale mais do que um copo de água de alguém com muita sede.
Inventaram-se medicamentos tão potentes que para atenuar a nossa dor, ainda conduzem à nossa morte ainda com mais avidez. Os psicotrópicos, a morfina, e um cocktail em forma de liquido, injectável intravenosa , mais conhecida por quimioterapia são os inibidores da dor que persiste em não sair, às vezes cura outras não...até à hora da morte.
Uma sala, com seis pessoas semi deitadas aguardam pela sua "dose" uns fazem rádio outros quimio.
Esperam, olham-se uns aos outros, calculam quem vai primeiro.
Há momentos de conversas, sobre tudo, come se fosse uma família num jantar de Natal, interessante ouvir temas que normalmente não se discute nos dias de hoje, e urge pensar, porque não se fez enquanto se tinha saúde. Dizem-se verdades, chamam-se os "bois" pelos nomes...interessante e triste ao mesmo tempo. Ninguém vai preso por dizer a verdade- diz um homem, totalmente acabado, tem um tumor maligno no Pancreas. Deve ter meses de vida, dois ou três no máximo.
A violência como a "besta" vai comendo as pessoas é um segredo ainda não descoberto.
Era um atleta, jogador de futebol, da segunda divisão. Começou por ter dores nas costas, era normal,segundo o médico da equipa onde jogava, que seria o cansaço normal depois de 90 minutos a correr. Era ponta de lança, e marcava muitos golos. Disse-nos uma vez. Depois vieram os vómitos durante o jogo, sangue quando urinava e depois de um exame de rotina veio a noticia. Estava a prazo.
Outro homem, da Guarda, serrano de gema, sem papas na língua, é o mais falador. O tabaco foi a sua companhia durante quarenta e sete anos, chegava a fumar aos três maços por dia. Foi um suicídio lento, eram a sua companhia de viajem, foi camionista.
Começou com uma simples rouquidão, depois uma tosse muito seca, respiração limitada, ausência de sono, e a dificuldade em engolir alimentos levou-o às urgências para ser diagnosticado um tumor maligno nos pulmões. Já estava à espera, disse ele, como se fosse uma"coisa" normal.
E depois há os outros, coisas simples, como um sinal que aparece, numa perna, e que não é nada demais, e um mês depois brota uma espécie de pus amarelo. Não se sabe se foi sol a mais na praia, ou outra coisa qualquer...aquilo simplesmente aparece.
Sentados, ali, à espera que a vida os veja partir, para que outros os substituam nos seus lugares.